domingo, 27 de fevereiro de 2011

loucos, ocos, ecos

Loucos em seus próprios ocos que se encontram com outros loucos
Loucuras saem em ecos, sorrisos se revelam
quando as loucuras ecoam de seus ocos formando um elo

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

Servo de todos


Servo de todos (Amélia Rodrigues, in “Luz do Mundo” – cap. 18)
A imensa planície se desdobra entre os contrafortes dos outeiros.
Ao longe, o "primogênito dos montes" da Palestina — o Hermon — ostenta o cabeço aureolado de sol, e, a regular distância, o Tabor, parecendo uma sentinela natural, altaneira, defendendo a imensa planície, onde a balsamina medra em abundância e os tamarindeiros se arrebentam em flores...
Simultaneamente ali está a planície dos homens na qual se misturam as paixões e se decompõem as esperanças.
Planície da Terra e planície dos corações.
Naquela se misturam os cadáveres e as moscas entre córregos que cantam e flores que desatam aromas. Nesta as inquietações e desesperos, fecundando sorrisos e edificações.
Na terra os homens...
Nos homens o barro frágil da terra...
* * *
A planície dos espíritos se perde de vista. A multidão se agita e percorre os caminhos.
Longas são as estradas a vencer.
Dia de sol e céu transparente. A leve brisa murmura uma doce música no arvoredo, carreando ondas de suave perfume.
A Sua figura é um desafio — desafio de amor! Mais do que um estóico, porque faz do sofrimento um meio de atingir Deus e não o fim precípuo do Seu ministério, Ele parece penetrar no dédalo de todas as solicitudes humanas.
Pairando na face o tênue véu de singular melancolia, Seus olhos se transformam em duas estrelas reluzentes.
— Que vínheis discutindo pelos caminhos? — indagou. A voz pausada possuía um tom de reproche melancólico.
Vivia com aqueles companheiros, sentia suas aspirações, participava das suas dores, falava-lhes do Reino e das suas realizações e eles, no entanto, continuavam esvaziados de ideal. Fizera-se igual sem participar das suas querelas, testemunhando a nobreza da Sua compreensão permanente e ajudando-os, não obstante se demoravam trêfegos, levianos...
— Que vínheis discutindo pelo caminho? — A indagação os surpreendera, crianças espirituais, disputadores da ilusão...
* * *
Eles vinham joviais e alegres. Uma festa n’alma cantava júbilos inesperados. O dia de sol, a transparência do ar, o azul do céu, o frescor daquela hora matinal, as recordações dos acontecimentos últimos, no alto Tabor e em baixo, ao lado do epiléptico, as exaltações da massa já saciada nas primeiras tentativas, que não suportavam sopitar as inquirições que desde há algum tempo bailavam nas suas mentes.
— Quem dentre nós será o maior, no conceito do Rabi? Qual será o maior no Reino dos Céus?2
A pergunta espocou espontânea, natural, inocente...
Estugaram o passo e se entreolharam... Quem seria realmente o maior dentre todos? — pensaram. E como se o assunto não merecesse maiores considerações um silêncio incomodo se abateu sobre o grupo. No íntimo, porém, cada um se exalta e sorri emocionado, meneando a cabeça em assentimento, como se estivesse a ouvir o Mestre gentil destacar o mais amado, o mais relevante — é claro, que cada um a si se atribui o mérito da escolha.
As pedras do solo ao atrito com as alpercatas rolam, produzem característico ruído e a marcha prossegue.
— Eu, — referiu-se Judas — sem dúvida gozo da relevante confiança do Amigo. A mim me foi entregue a bolsa da Comunidade, num atestado inequívoco de consideração. Não receio, por isso, ser, senão o maior, um dos maiores...
Sorriu e cofiou a barba, fitando os companheiros extremunhados.
— Sou austero — apostrofou Tiago, Maior. — E o Mestre nunca deixou de me reservar Suas confidências, expressivas e nobres. Convida-me, não poucas vezes, a colóquios longos, narrando aos meus o que outros ouvidos não podem escutar...
Tomé, o Dídimo, verberando a prosápia dos companheiros, atroou:
— E Simão Pedro? Não tem sido Ele o distinguido com maior consideração? Não é a sua a casa elegida para as reuniões e os estudos dos planos futuros? Não esteve ele, também, no Tabor, como testemunha? Eu desconfio muito que não estaria mal situado na opinião do Senhor...
— João, todavia, repousa no seu peito — aventou Bartolomeu. — É o mais jovem de todos nós, carinhosamente tratado pela ternura do Embaixador Celeste. Talvez não tenha ainda toda a inteireza exigível para continuar a Obra ora encetada, não obstante...
— Mateus Levi, convém ressalvar, — afirmou Pedro, algo inquieto — é o mais erudito do grupo. Somos pescadores ignorantes, ele, todavia, lê e escreve, é hábil na arte das letras e da convivência com as leis. Embora o seu silêncio...
— Não concordo! — bradou Judas...
A discussão se fez acalorada e por pouco o pugilato infeliz não perturbou a união dos corações chamados ao amor, à concórdia, à paz...
— Que vínheis discutindo pelo caminho? — eis a indagação do Senhor.
"Queríeis saber quem dentre vós é o maior no Reino dos Céus. Eu vos digo: aquele que se fizer o menor.”
"O responsável do grupo é o servidor de todos. O comandante é o colaborador do grupo. O chefe é o subalterno das necessidades dos servidores.”
"Servo dos servos.”
"Não se pertence nem se permite repouso.”
"Renuncia ao nome e à paz, à alegria e à própria opinião.”
"Zeloso pelo bem-estar de todos é magoado por uns e outros, por todos incompreendido?”
"Quando ajuda sofre e sofre porque não pode ajudar — e todos o espezinham. Ferem-no e buscam--no, traem-no e sorriem para ele — servo de todos!”
"O maior se apaga servindo.”
"Apontado, ninguém crê nele, subestimam-no. Não merece consideração e assim paira naturalmente inatingido, sereno no dever íntimo, respeitado por si mesmo: o maior dentre todos!"
Os invigilantes recordam, então, o pedido de Salomé, a imprudente e a precipitada esposa de Zebedeu, que fora solicitar-Lhe colocar os dois filhos, um à direita outro à esquerda do Seu trono, quando fosse a hora do triunfo.
Não esqueceriam a resposta pausada e triste com que Ele elucidara a ambiciosa mãe:
— "É necessário saber se eles estarão dispostos a sorver a taça da amargura até a última gota —respondera. Quanto, porém, a colocá-los um à minha direita e outro à minha esquerda, isto não me compete..."
Houve um silêncio.
De cabelos encaracolados, passou gárrula criança de sorriso em flor.
O mestre, tomando-a, dela fez o seu modelo.
"Aquele que se fizer semelhante a um menino este penetrará no Reino de Deus." Os pequenos e claros olhos cheios de brilho do infante refletem pureza integral.
Ser adulto, com alma de criança, sem as mazelas da idade adulta.
Envelhecer e permanecer puro — sem malícia, sem impiedade, sem mágoa, jovial inocente como uma criança na quadra primaveril.
O maior de todos é o mais afável, o que mais se dedica e serve. Servo de todos e de todos amigo, não escolhendo misteres para ajudar.
Há os que são os maiores na ilusão e no engodo e sofrem a febre da ambição e da loucura.
Grandes, o mundo sempre os teve, com a alma enferma e mesquinha.
Pequenos nas grandes coisas e grandes nas tarefas insignificantes. Apequenar-se na grandeza para glorificar-se na pequenez.
— Que vínheis discutindo pelo caminho?
Seja, o que deseja o destaque, o servo de todos; faça-se o menor. Menor no orgulho. Maior na abnegação, na renúncia.
Maior — menor de todos, como Ele se revelara.